23/08/2010

"Espera..."

"Não, não partas já, espera um pouco ainda, espera que o tempo passe e nos apazigúe a alma, nos arrefeça os ímpetos e nos faça voltar à terra, a essa estúpida reguladora rotina que nos rege os dias e as noites e nos faz sentir que afinal somos pessoas normais, donas da nossa vida e do nosso coração. Espera só um momento, deixa que o silêncio perpetue os nossos momentos de perfeição, a comunhão das nossas almas em noites passadas em claro, em conversas ligadas por um fio invisível, o fio do desejo, daquele desejo duradouro e certo que o tempo não mata, só ajuda a cimentar, que a distância não destrói, só ajuda a alimentar.
Espera só mais um instante, até que a tua memória quente cristalize os nossos momentos e os preserve como um tesouro secreto por mais ninguém descoberto e cobiçado. Guarda bem estes instantes, num lugar qualquer entre a tua cabeça e o teu coração, que deve ser mais ou menos onde se situa a alma e espera que o tempo te diga se o que sentes vai crescer e dar sentido à tua vida.
Espera, não partas ainda, o dia ainda não acordou, na rua só os cães ladram, os bêbados choram e os candeeiros vivem, a noite é enorme, é imensa, é nossa e só nossa, cada minuto passa mais devagar porque não pode ver que horas são...
Está escuro no quarto, mas nunca vi tanta luz, uma luz doce e ao mesmo tempo avassaladora que sai dos teus olhos semicerrados, das tuas mãos entrelaçadas nas minhas, da tua voz sussurrada e próxima, do teu sorriso onde caibo inteira. A luz envolve-me como uma teia e eu sinto-me embalada como uma criança no berço, fecho os olhos para te ver melhor e de repente o passado passa todo por debaixo das minhas pálpebras como um filme acelerado e vejo-me outra vez com 18 anos a sonhas com o futuro, a imaginar tudo aquilo em que me tornei, para logo regressar ao presente e ficar aqui, imóvel como uma estátua, à espera que o tempo passe e nada mude...
Espera só mais um ou dois minutos, eterniza este abraço, grava-o na tua memória para que amanhã e depois, e depois ainda, o possas sentir outra vez, que ele te acompanhe e te ajude, te dê apoio e protecção, te faça sentir amado e desejado, como uma mãe ama um filho, sempre e em silêncio, sem nunca perder a paciência, sem nunca cobrar, sem nunca pedir, só dar, dar, dar...
Espera ainda, esconde tudo, leva o meu cheiro para casa e esconde-o dentro de uma gaveta, não deixes que ninguém saiba que te quero e te desejo, não deixes que falem de mim, não oiças o que os outros dizem, eles não estão no meio de nós, ninguém está no meio de nós, só nós é que estamos aqui, a vida que vivemos é a nossa vida e não a que os outros querem que seja. Vive cada minuto intensamente e no maior segredo, faz como aquele poeta que só deixou que as suas palavras fossem lidas depois de morrer, para que ninguém o julgasse ou pudesse apontar-lhe o dedo.
Guarda-me bem perto de ti, sempre perto, mesmo que eu não te veja ou tu não me fales, estarei ali, junto de ti, como Vénus sempre atrás da lua quando o dia cai e a noite se levanta, silenciosa, altiva, celeste e discreta. Deixa-me ficar aí, aí ninguém me vê, estou protegida pela descrição da noite, pelo silêncio dos pássaros que já dormem e não nos podem denunciar. Serei uma sombra, um suspiro, um sorriso, uma festa no teu cabelo.
E a minha presença, certa e segura junto ao teu coração, vai-te trazer de volta os sons das nossas conversas, a temperatura das nossas mãos entrelaçadas uma na outra, o sabor da minha boca na tua, o meu olhar dentro do teu como se nunca tivesse partido, como se nunca mais precisasses de voltar a essa estúpida rotina que nos rege os dias e as noites, e nunca mais te sentirás uma pessoa normal, igual às outras, porque é agora que tudo pode acontecer de outra forma e a vida se transformar em algo que sempre sonhaste...
Mas espera, espera um pouco ainda, espera porque a espera é o tempo de deixar crescer aquilo que há-de ser. E é sempre pouco, quando se tem tanto para dar. E receber."

Margarida Rebelo Pinto
in as crónicas da margarida

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